sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Imigração ilegal e Tráfico de Seres Humanos

Imigração ilegal e tráfico de seres humanos
Repercussões na Segurança Interna



I


Introdução


A reestruturação da nossa segurança interna, no actual panorama das relações internacionais, que com os efeitos da globalização, obrigou a alterar profundamente a forma de combater as novas ameaças, viu a necessidade desta reflexão ser imposta pelos acontecimentos de 11 de Setembro, como culminar de novas concepções de guerra e de perigo.
As ameaças que se caracterizavam, antes daquela data, por um pendor marcadamente ideológico, consequência do que estávamos habituados a constatar numa relação de espaços com soberanias perfeitamente demarcadas, vivem actualmente um período de evolução, transferindo para o campo religioso, sem um suporte ideológico conhecido para a sua construção social, sem território demarcado e sem rosto, a justificação de uma guerra que se procura levar para o confronto civilizacional, e por isso desterritorializado, cujos contornos nos obrigam a reflectir sobre as respostas adequadas a esta nova fase.
O actual quadro geopolítico mundial reflecte esta nova realidade em que o caminho para a unimultipolaridade, que volta novamente a ser trilhado depois da eleição de Barack Obama[1], evidencia de forma notória a emergência de potências regionais, e de outros fenómenos de funcionamento em rede que prescindem da necessidade de domínio de um território.
O resultado desta nova realidade propiciou também outros fenómenos, para além das ameaças terroristas, sendo o desencadear dos fluxos migratórios, principalmente os de carácter irregular, uma realidade a ter em conta na alteração dos quadros sociais dos países de destino, principalmente pela criminalidade a estes associada[2].
A Lei 20/87, de 12.06, Lei de Segurança Interna, caracterizava, no seu artigo 1º, n.º 1, a segurança interna [como] a actividade desenvolvida pelo Estado para garantir a ordem, a segurança e a tranquilidade públicas, proteger pessoas e bens, prevenir a criminalidade e contribuir para assegurar o normal funcionamento das instituições democráticas, o regular exercício dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos e o respeito pela legalidade democrática, para no nº1 do seu artigo 4º, quanto à territorialidade, definir que a segurança interna desenvolve-se em todo o espaço sujeito a poderes de jurisdição do Estado Português.
A ideia subjacente a estas definições e conceitos legalmente expressos traduzem um pensamento que existia na geografia política da altura, ainda antes da queda do muro de Berlim: espaços definidos e com fronteiras perfeitamente delimitadas, controladas a partir de uma ideia estática da delimitação de soberanias.
Não houve, em razão disso, previsão da porosidade das fronteiras e das consequências que, entre outros factores, as novas tecnologias da informação iriam trazer ao mundo, através das quais espaços completamente fechados e inacessíveis ao mundo livre puderam ter a percepção do que acontecia no mundo ocidental, criando expectativas de consumo suficientemente fortes para os mobilizar para uma demanda na busca de um novo mundo, onde era possível o acesso a bens não disponíveis em regimes de ditadura e pobreza que viviam.
Verifica-se uma eclosão de multiculturalidade, proporcionada não só pela queda do muro de Berlim, mas também com a vinda para a Europa de pessoas originárias de regiões colonizadas, abrindo-se o leque a africanos, árabes, asiáticos, sul-americanos, para além de russos, ucranianos, moldavos e romenos.
Naturalmente que perante este cenário cada país tem a sua especificidade e afinidades culturais e históricas que não podem ser menosprezadas, estabelecendo-se fluxos migratórios que reflectem ligações da História recente de alguns países; com o mundo em mudança, as relações formais, base do relacionamento internacional clássico, têm de repartir este palco com as novas realidades.
A nova era das relações internacionais passa a incluir, a partir de 1989, com os desmoronamento da URSS, uma rede informal de extrema flexibilidade, em contraponto ao peso dos Estados e das suas estruturas burocráticas, passando a coabitar com o clássico sistema de relações internacionais; constata-se, em razão disso, uma incerteza do Direito Internacional: os Estados passam a ter que dirimir com organizações colectivas de natureza incerta; e a balança de poderes, conservada desde 1945 e desenvolvida com a guerra fria, deixou de existir, diluindo-se a importância do poder unitário do Estado, aumentando, por outro lado a categoria dos Estados exíguos e sem presença efectiva nos vários centros de decisão[3].
Face ao cenário atrás descrito a revogação da lei atrás mencionada tornava-se necessária, vindo a acontecer em 29 de Agosto de 2008, com a entrada em vigor da Lei 53/2008.
Ainda que o preceituado no n.º 1 da Lei 20/87 se mantenha, e faz sentido que assim seja, as alterações dignas de registo verificam-se não só nas medidas práticas de coordenação entre as diversas forças e serviços de segurança (art.º 6º, 15º e 16º), sob a responsabilidade do Secretário-Geral de Segurança Interna, que tem legalmente prevista, em situações excepcionais, competências de comando operacionais (art.º 19º); mas também na interligação, que se torna imperativa, entre os Serviços de Informação da República Portuguesa, atenta a sua superior coordenação dos Serviços de Informações e Segurança (SIS)[4] e os Serviços de Informações Estratégicas e de Defesa (SIED)[5], cuja representação está também assegurada na composição do Conselho Superior de Segurança Interna (art.º 12º, al. e) e h).
Esta nova visão que integra os serviços de “intelligence”, tanto os vocacionados para operar internamente (SIS), como os que operam a partir do exterior (SIED), tendo em conta a defesa dos interesses nacionais, verifica-se devido à constatação, há muito percebida, que a segurança interna e externa cada vez mais se confundem, e a razão é tão simplesmente esta: ameaças preparadas a milhares de quilómetros de distância, situados geograficamente em locais de importância reduzida para Portugal, podem ter reflexos em território nacional, razão pela qual constatamos, em muitos pensadores, a polémica sobre o papel das forças armadas – matéria que aqui não se abordará – nas actuais circunstâncias no interior do território nacional, em caso de crises e catástrofes.



II


A emergência das “redes” nas Relações Internacionais


Deste novo cenário emerge o que se convencionou chamar de “redes” e que se traduzem num efeito directo nas relações que ultrapassam os próprios Estados, sendo um exemplo muito actual as caracterizadas no apoio ao terrorismo ou à imigração ilegal e tráfico de seres humanos.
A questão é tanto mais complexa que se podem implementar contactos, ligações, teias de interesses entre Estados e “redes”, e entre “redes” e “redes”.
Cruzam-se os mais diversos interesses e tendo em conta a forma clássica como se desenvolviam as relações internacionais instala-se o caos em substituição do vazio provocado pela “aceleração da História”[6].
Contrariando o excessivo peso do Estado, à sombra do qual todos os movimentos eram detectados e controlados, o vazio político e o advento das novas tecnologias permitiram que os novos espaços se tornassem apetecíveis aos novos interventores, com destaque natural para as redes de imigração ilegal.
Se tivermos como ponto de partida a situação de desmoronamento dos Estados do Leste da Europa, países cuja oposição ao regime totalitário comunista no apoio às populações, no acesso a alguns bens de consumo básico, se fazia sentir a partir de estruturas do crime organizado, ainda que quase submerso por um Estado massificador que tentava uniformizar tudo e todos retirando toda e qualquer tentativa de iniciativa e liberdade individual, cedo chegamos à conclusão que um nicho de mercado se abria.
O desmoronar das estruturas dos estados comunistas permitiu a sua substituição pelo crime organizado – organizações ascendentes que para além do tráfico de armas e droga perceberam que poderiam gerir a vontade irreprimível das pessoas, sujeitas a uma cultura de pobreza e mediocridade nos últimos cinquenta anos, em atingir o “el dorado” da Europa Ocidental, Estados Unidos da América ou Canadá. Em suma a gestão da imigração ilegal e tráfico de pessoas, tendo em vista lucros exorbitantes.
Inadaptadas, as estruturas clássicas, não conseguem reagir preventivamente; o peso da máquina burocrática junto dos serviços consulares dos Estados não dá resposta em tempo útil às ansiedades dos novos migrantes e a Europa passa de fonte de emigração a alvo dos fluxos migratórios; entre os candidatos a emigrar e os serviços formais dos serviços diplomáticos e consulares, verifica-se uma intermediação (as redes) que está actualmente a decidir a regulação dos fluxos migratórios.
Os métodos formais e legais são marginalizados e não mostram capacidade de resposta, emergindo um negócio que irá determinar a condição humana para o novo milénio – uma nova forma de escravatura.
Havendo vontade de emigrar, os candidatos colocam-se (perigosamente) em posição de subalternidade da qual saem em condições extremamente penosas, sendo as rotas e a vontade de migrar sujeitas à imposição das redes de imigração clandestinas, tornando-se perfeitamente vulgar um imigrante sair do seu país de origem sem saber o destino que lhe estará traçado, nomeadamente nos casos das mulheres vítimas de exploração sexual.



III


Portugal – Da emigração à imigração


Depois de 1974, com a decisão militar de pôr um ponto final na guerra de catorze anos sem todavia formular e adoptar um conceito estratégico de descolonização, as fronteiras geográficas de Portugal sofreram uma reformulação radical, voltando aos noventa e dois mil quilómetros quadrados europeus, compreendendo os arquipélagos atlânticos, e com apenas um vizinho geográfico reconhecido como tal, que é a Espanha.[7]




Prof. Adriano Moreira
A data a que alude o Sr. Professor Adriano Moreira é um momento estrutural e decisivo no posicionamento de Portugal no mundo, pelo menos quanto à ideia de Portugal, na relação diferente que o nosso país sempre advogou para com o espaço que se chamou de além-mar e que se estendeu do Atlântico ao Índico chegando a Timor.
Estruturalmente Portugal, ainda que um pequeno país e de escassos recursos, concebeu e adaptou-se a um mundo com fronteiras do Minho a Timor, passando pelo Rovuma e Cunene. Foi o tempo de espaços fixos em que a ideia de movimento se confinava ao Estado, em sentido lato, com um controlo massificador do movimento das pessoas, situação de vantagem decorrente da escassa fluidez de informação, própria dos Estados limitadores dos direitos individuais e também daquilo que era, à época, o escasso desenvolvimento associado às tecnologias de informação.
Foi o tempo de outra ideia de Portugal, foi o Portugal de aquém e de além-mar, que via na extensão do seu império uma ideia de combater um isolamento político a que estava vetado internacionalmente e que obrigou muitos dos seus cidadãos a demandar outras paragens. Este cenário que na época contemporânea, com a independência do Brasil, tem raízes na segunda metade do século XIX foi percebido, àquela data, por Alexandre Herculano e pelo relator de um inquérito parlamentar de 1873, Barros e Cunha, ao centrarem nas motivações económicas a decisão do acto migratório, invocando o primeiro “a insuficiência dos salários entre nós” e o segundo de que pretendiam “… levados pela ambição de voltar ricos à pátria”.
Regressando ao tema da ideia de Portugal, já mais elaborada e desenvolvida pelo Estado Novo ao nível do discurso político, a partir da Constituição de 1933, com origem no processo político iniciado pela ditadura militar de 28 de Maio de 1926, e que culmina com o 25 de Abril de 1974, verifica-se que emigram de Portugal mais de dois milhões de pessoas das quais cerca de 30% saiu, como então se dizia, a salto[8].
Tal ideia (a nossa ligação a África) não era coincidente com os destinos da emigração portuguesa e até mesmo com as grandes decisões estruturais do país no seu relacionamento externo, nomeadamente ao nível económico, que contrariavam o discurso político.
A título de exemplo verificamos que o destino de 1.500.000 de emigrantes, entre 1960 e 1974, teve como objectivo a França e a Alemanha, contabilizando um total de 40% da nossa população activa, que eram os dois maiores países da então C.E.E., não visando destinos como países da EFTA ou África.
Torna-se evidente que a Europa do Tratado de Roma se assume como a grande influência externa desde 1960, embora fosse África o centro do discurso. Também ao nível económico, por exemplo, em 1960, nas relações com a C.E.E. (sem a Inglaterra) Portugal importava 39% e exportava 29%, com a EFTA importava 20% e exportava os mesmos 20% e com a África portuguesa as relações comerciais traduziam-se em 14% de importações e em 25 % de exportações. A partir de 1973, já com a Inglaterra na C.E.E., a relação comercial reflectia 39% de importações contra 21% de exportações situação que espelhava mais do triplo da África portuguesa, 10% de importações contra 15% de exportações, servindo esta ideia para concluir que dois terços dos principais fluxos financeiros positivos e essenciais para manter a economia portuguesa, como sejam créditos externos, investimentos, remessas de imigrantes e receitas de turismo (com cerca de quatro milhões de turistas anos) vinham das Comunidades Europeias.[9]
Em resumo, fica essencialmente a ideia de que a procura de uma vida melhor no exterior tem como elementos propulsores de tal decisão a debilidade de uma economia ainda pouco industrializada, fortemente ligada à agricultura e que acaba por ter um excedente de mão-de-obra, caracterizada por baixíssimos salários, e que obriga a uma integração da mão-de-obra portuguesa no mercado internacional de trabalho, fruto claramente de apertados horizontes de trabalho, como dizia Orlando Ribeiro, sendo os espaços procurados, por excelência, as Américas e o continente europeu.
A somar a este défice estrutural da nossa economia, que se arrasta claramente até à primeira metade do século XX, associa-se na década de sessenta um aumento da repressão política do regime e o início da guerra colonial, o que faz com que a associação da emigração legal e clandestina tenha uma variação entre quarenta mil emigrantes legais e cento e quarenta mil emigrantes ilegais em plenos anos setenta[10].
Constata-se aqui uma clara divergência entre o discurso político e a realidade que o país abraçou, ou, se quisermos ser mais directos, entre o sonho atlântico, com extensão a oriente, e a realidade europeia com que nos confrontávamos e que atrás mencionamos. Foi a vertente do sonho que marcou, ainda assim, os primeiros passos, no período que se seguiu ao 25 de Abril de 1974, com o imaginário das populações das ex-colónias claramente marcadas pelo discurso político. Marcou sem qualquer dúvida os portugueses que retornaram, marcou o imaginário da mestiçagem que se deixou assimilar pela cultura portuguesa e finalmente marcou a população autóctone, ainda que sem ligações materiais a Portugal, mas que claramente se deixou influenciar por uma ideia de cultura portuguesa, da qual a língua é a derradeira expressão.
O momento do retorno iniciado a 25 de Abril de 1974 e que circunscreve Portugal às fronteiras a que se refere o Professor Adriano Moreira, apenas com um vizinho geográfico – a Espanha –, acciona a inversão do sentido do fluxo migratório em relação às ex-colónias. Criaram-se condições para uma segunda vaga de democratizações na Europa, depois da Segunda Guerra Mundial, e que se inicia precisamente por Portugal, segundo Samuel Huntinghton.



IV


Portugal – A adesão à Comunidade Económica Europeia

Quando Portugal aderiu à Comunidade Europeia, no dia 1 de Janeiro de 1986, a Europa era muito diferente do que é hoje. [...]
E a Comunidade, um clube restrito de gente rica que apenas muito recentemente aceitara abrir as portas a alguns primos afastados do Sul.
[11]



Teresa de Sousa


Num primeiro momento, a adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia – actual União Europeia –, teve consequentes repercussões, entre outros, ao nível do desenvolvimento económico e social, o que levou, em especial a partir do final da década de oitenta, a que o país fosse visto com outros olhos, pelas comunidades migrantes, face á sua nova capacidade de atracção.
A partir deste momento o crescimento tem sido imparável: de 50.750 em 1980, os estrangeiros residentes legais em território nacional passaram a 436.736 em 2007[12], não existindo grandes alterações para os dias de hoje.








Fig. 1 – Fonte SEF


Regressando aos fluxos migratórios utilizadores dos corredores atlânticos, que antes de 25 de Abril de 1974 tinham expressão, já de algum modo assinalável, na comunidade africana oriunda de Cabo-Verde, Portugal coincide, no discurso e na prática no seu regresso à matriz europeia e cuja consequência foi um controlo migratório bastante restrito que tem como sentido único a viagem a partir das suas ex-colónias em direcção a território nacional. A direcção e a estratégia de controlo passam pelo apetrechamento da sua principal fronteira aérea, sentindo-se que um eventual desequilíbrio se poderia registar pela manifestação das novas tendências a partir de África.
As fronteiras aéreas, mais do que as terrestres e as marítimas, passam a ser a preocupação do país tendo em vista a contenção de fluxos migratórios, face à velocidade de comunicação possibilitada pelos transportes aéreos.
A entrada no chamado clube dos ricos, ainda que no início não colida nem obrigue a uma soberania partilhada quanto às fronteiras (Schengen viria mais tarde), acentua Portugal como uma das referências no espaço europeu para as ex-colónias e a partir de dado momento, o aeroporto de Lisboa, nos dias de voos entre Lisboa e as capitais dos PALOP/CPLP, passa a ser uma autêntica fronteira geográfica com aqueles países, tal o caldeirão de culturas ali representado, seja para mandar notícias ou enviar e receber encomendas.
Para além da tendência já iniciada da imigração cabo-verdiana, houve matrizes sociológicas e mesmo étnicas, radicadas nas ex-colónias, que marcaram os fluxos migratórios com destino a Portugal (v.g. as comunidades indostânica e chinesa residentes em Moçambique).

Nesta fase, face a uma diferença entre a realidade social e os dados atrás descritos, desenvolvem-se franjas de marginalização que vão absorver estes imigrantes e que basicamente são a falta de documentação (elemento fundamental para a concessão de um estatuto jurídico sólido) e a participação informal na sociedade portuguesa, com particular destaque para o mercado de trabalho ilegal e falta de condições de habitabilidade, lançando-se as premissas para alguma perturbação que permite, já nos anos noventa, uma acesa discussão política à volta do tema.
Identificam-se assim duas marcas: falta de documentação e trabalho ilegal que vão marcar, de forma acentuada, o desenvolvimento de actividades marginais conexas à imigração ilegal a partir dos anos oitenta – à data não criminalizadas.





Principais rotas – início da década de 80
Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Angola e Moçambique.







Fig. 2



Este momento, que podemos enquadrar temporalmente como os fins da década de setenta e o início da década de oitenta, assenta ainda num controlo tradicional de fronteiras e revela mais uma preocupação com as fronteiras externas aéreas e com o espaço atlântico, não se verificando especial preocupação com as fronteiras terrestres, partindo-se do princípio que a nossa ligação geográfica a Espanha serviria, por si só, como elemento de defesa face a eventuais desequilíbrios nesta matéria.
A nossa preparação estrutural, mesmo após a entrada na C.E.E., visava um controlo tradicional das nossas fronteiras, a partir da ideia de Estado soberano, com delimitação clara do seu espaço territorial, não pensando numa ideia de soberania partilhada com que nos viemos a confrontar anos depois.
Por esta altura, ao nível migratório, começava a desenvolver-se uma pressão de que só daríamos conta mais tarde, a partir do momento em que a sociedade civil e as organizações não governamentais trouxeram o tema para debate. A realidade oficial dos números no início da década de oitenta apenas tem uma aproximação real com a comunidade de Cabo-Verde e não traduz a realidade, estando a projecção da imigração ilegal muito além dos números de então e perante a qual não se tomavam medidas.






V





As novas fronteiras de Portugal

O segundo momento coincidiu com a entrada em vigor do Acordo de Schengen e respectiva Convenção de Aplicação, em Março de 1995, com a consequente abolição dos controlos nas fronteiras internas dos estados signatários, dos quais Portugal faz parte, a que correspondeu o regime de livre circulação de pessoas actualmente em vigor. Esta nova realidade faz dos Estados signatários autênticos pólos de atracção impelindo potenciais imigrantes, uma vez dentro do chamado espaço Schengen, a tentarem a sua sorte num destes Estados, “beneficiando” assim, de alguma forma, do referido regime de livre circulação de pessoas.
Estas e outras razões que poderiam também aqui ser enumeradas, contribuíram decisivamente para que Portugal deixasse de ser o país de emigração de outros tempos e se tornasse cada vez mais atractivo para os nacionais de outros países, convertendo-se num potencial país de destino de imigrantes, naturalmente à sua medida, e às quais não se podem dissociar os efeitos visíveis do desenvolvimento, da modernização e abertura política.
Esta influência vem, anos depois, a marcar um segundo tipo de migração, que passa a utilizar corredores continentais e que desenvolve rotas a partir do continente asiático e de alguns países do leste europeu, por via terrestre numa primeira fase, com destino ao espaço Schengen e ao nosso país em concreto.









Fig. 3




VI

O fim do controlo tradicional de fronteiras

"Nessa relação com a circunstância avultam as definições ou redefinições a fazer quanto às estruturas das fronteiras emergentes, concretamente em relação à Espanha das nacionalidades, ao Norte de África que já é uma fronteira geográfica, ao Atlântico em que se articula o modelo de segurança do Norte, em mudança, com o modelo de segurança do Sul em perspectiva, com o espaço transversal da lusofonia, e finalmente com o globalismo envolvente. [...]
Tal revisão, no quadro de interdependência mundial crescente em que nos encontramos, aponta no sentido do conceito renascentista de soberania, que vigorou séculos, se reorganize para tornar vigente uma reformulação que corresponda a uma soberania cooperativa, ou comparticipada, ou de serviço, que coloca em primeiro plano a solidariedade nos grandes espaços que, como a NATO e a União Europeia, procuram suprir as insuficiências crescentes do unilateralismo clássico".
[13]


Prof. Adriano Moreira

Com a evolução do Acordo de Schengen veio a abolição do controlo das fronteiras terrestres intra Estados-Membros que ocorre num momento em que já havia desmoronado o muro de Berlim e se dissolvia o império soviético.
É-nos permitido a partir deste momento definir o tipo daqueles que se estruturam como os principais fluxos migratórios para Portugal, em ruptura com um passado recente, atendendo sobretudo ao perfil dos imigrantes neles inseridos, bem como ao seu volume ou importância no panorama global da imigração para o nosso país e ao facto de se tratarem de fluxos que, muitas vezes, estão potencialmente relacionados com casos de imigração ilegal, seja esta espontânea ou organizada, assim como com a criminalidade associada.
Esses fluxos migratórios são os das seguintes origens: América do Sul [com claro destaque para o Brasil]; países do leste europeu [essencialmente oriundos da Ucrânia, Roménia, Moldávia e Rússia]; países africanos de língua oficial portuguesa [PALOP/África]; península indostânica (constituída pela Índia, Paquistão e Bangladesh); e extremo oriente com particular destaque para a China.
Este novo escalonamento, por ordem de importância, dos fluxos migratórios, tendo em conta apenas a perspectiva das consequências na segurança interna do país, deve-se à ruptura originada pela adesão ao Acordo de Schengen o que, entre outras coisas, faz com que ao nível de uma fronteira de segurança, com características administrativas, sociais e de polícia[14], tenhamos partilhado a soberania, relativamente ao controlo fronteiriço, com os demais países aderentes ao acordo. Este pormenor faz com que o acesso a Portugal a partir do leste europeu esteja dependente, por exemplo, do controlo fronteiriço feito nas fronteiras europeias da União (ver fig.3), tornando irrelevante, neste domínio, a nossa ligação geográfica a Espanha.
A irrelevância da nossa fronteira com a Espanha advém do facto de os imperativos legais em que se enquadram os imigrantes (detentores de visto válido ou isentos do mesmo), após o cruzamento das fronteiras externas, impedirem que a sua livre circulação no interior do espaço não possa ser questionada antes de se provar que a sua permanência vai para além do período previamente autorizado.
Este pormenor, que não é de somenos importância, é de sobremaneira explorado pelas redes de tráfico de imigrantes que conhecedores dos obstáculos legais que rodeiam a actuação das autoridades dos Estados-Membros tem como consequência a alteração da matriz social dos imigrantes em Portugal, fazendo de cidades como Moscovo ou Kiev[15] importantes portas de acesso à Europa comunitária, permitindo que países de origem migratória situados no extremo oriente, península indostânica, ex-repúblicas soviéticas, cheguem ao nosso país, como a outros Estados-Membros, sob controlo de organizações criminosas.


VII


O controlo dos fluxos migratórios


Tendo em conta o anteriormente exposto, factores estranhos à vontade de cada um passaram a controlar os fluxos migratórios artificializando-os, impondo rotas, destinos e mercados de trabalhos. O crime organizado passou a controlar, em muitos casos, a vontade do ser humano em procurar uma vida melhor para si e para os seus.
Este óbice à liberdade e dignidade do ser humano é levantado por organizações criminosas e que dificulta muito a própria vontade das instituições em dar visibilidade e existência aos anseios dos próprios imigrantes.
Várias coisas jogam a favor dessas organizações: em primeiro lugar porque o acesso à possibilidade de imigrar tem de ser comprado, situação que implica à priori um posicionamento de subalternidade e dependência social e económica; em segundo lugar – e aqui entrando directamente na experiência em que se tem traduzido a investigação criminal nesta matéria – porque a partir do momento atrás mencionado, se estabelece um código de temor reverencial que impõe um silêncio absoluto, que a ser quebrado [permitindo resultados positivos numa investigação policial], poderá ter como consequência a eliminação física do imigrante vítima, ou de alguém da sua família; em terceiro lugar porque as estruturas dessas organizações, implantadas no terreno desde o momento da partida, passando pelo trânsito das rotas impostas e à entrega dos imigrantes às células de recepção no terreno, se encontram já de tal forma posicionadas que lhes é possível proceder a um controlo das pessoas sob a sua dependência.
Estruturalmente o que concorreu para que tal fenómeno se verificasse está directamente ligado à transformação das fronteiras portuguesas e a sua integração no grande espaço regional que é a União Europeia, situação que culmina um processo, entre 1945 e 1974, de alteração por três vezes das fronteiras geográficas e políticas[16] e que na sua terceira fase se orienta pelo “… princípio do multilateralismo na ordem mundial, (…) (onde uma) maior complexidade veio caracterizar as novas fronteiras portuguesas, condicionadas pelas decisões tomadas por uma sede de poder diferente da que decorria do tradicional conceito de Estado soberano, por uma progressiva dissociação da fronteira geográfica, a todos os níveis político, económico, de segurança e defesa, e cultural, face à configuração dos novos espaços, e pelo movimento crescente das migrações das populações estrangeiras, desenraizadas dos seus países de origem das suas culturas e das suas crenças e expectativas. Antigamente país de emigração, com uma fronteira demográfica disseminada pelos quatro cantos do mundo, Portugal é hoje um país de imigração, no seio do qual se desenham novas fronteiras de exclusão […] económica e social[17]. (…)
Muitas das competências soberanas dos Estados foram legadas a novos poderes supra nacionais, arrastando neste acto uma alteração profunda, não só das próprias estruturas políticas, sociais e económicas, das mentalidades e dos comportamentos mas, também, das próprias fronteiras, dos seus traçados, conteúdos e função.”[18]
É perante esta transformação que os Estados destinatários sentem uma forte concorrência na gestão directa dos fluxos migratórios, resultado de uma grande morosidade e dificuldade de acesso dos migrantes a este universo, mas também pelo elevado número de dificuldades levantadas pela burocracia que a imigração legal encerra, tornando o processo de tal forma lento, que a solução para se atingir o el dorado são geralmente as organizações criminosas, tal a facilidade com que prometem a sua concretização.
O perigo desta realidade faz com os fluxos migratórios e as rotas subjacentes permitam a colagem de diversos tipos de criminalidade, destacando-se desde logo à partida as diversas formas de controlo e coacção dos imigrantes em toda a sua extensão e a introdução de novas formas de criminalidade nos países de destino, situação que, caso não seja preventivamente acautelada, poderá originar um desequilíbrio social e a repulsa pelos recém-chegados.


VIII


A queda do muro de Berlim



Há meio século dividida em duas, a Europa viveu uma convulsão que teve como consequência natural o caos que as convulsões têm. O fim do equilíbrio provocou uma inevitável alteração dos pesos, com um claro pendor para o lado Ocidental face à aceleração da História.
Com o fim da guerra-fria, as razões pelas quais a região (Europa de Leste) manteve a sua importância mudaram radicalmente. Depois da queda do muro de Berlim, a política europeia tomou um novo rumo. A Europa de Leste abriu-se ao Ocidente e deixou de ser a linha de fronteira com uma super potência autoritária. Em vez disso, achou-se no papel de região tampão entre a União Europeia e a Rússia[19].
É esta fase, com a evolução natural para os acontecimentos dos nossos dias, que irá marcar de forma estrutural a emigração a partir dos países da Europa de Leste para a União Europeia, bem como de países subdesenvolvidos, através não só da Rússia, mas também da Ucrânia.
O fim do equilíbrio do terror e da ex-URSS, com a independência de muitas das suas repúblicas, o retorno da Rússia aos seus espaços naturais, provocou uma desagregação do controlo destes territórios, tornando excessivamente porosas e difíceis de controlar as novas fronteiras emergentes.
Do variadíssimo leque de crimes difusos e difíceis de combater, surge o crime organizado ligado ao tráfico de imigrantes como elemento desregulador das nossas sociedades. Esta vertente do crime organizado será, a partir deste início de século, tendo em conta os fortes indicadores fornecidos no final do século XX, o crime do século XXI a concorrer largamente com o tráfico de droga e tráfico de armas para só citar dois exemplos.


IX

A ascensão do crime organizado

Com esta desagregação (a abertura de espaços da ex-URSS), acelerou-se o aproveitamento do crime organizado pela exploração da imigração ilegal cujas razões a seguir explanaremos.
Desde logo, como primeira razão, surge este tipo de organização em rede, como estrutura lógica de acesso a uma pretensão (de hordas de emigrantes) que os estados depauperados e decadentes que gravitavam em redor de Moscovo não propiciavam.
As associações criminosas, mesmo no período que antecedeu a queda da URSS, eram a possibilidade única de acesso a determinados bens fora do alcance do comum dos mortais, daí o respeito que conseguiram junto das populações, estendendo-o em muitos casos aos nossos dias. A maneira como actualmente rivalizam com o Estado, deve-se à forma como se estruturam e que em síntese se pode descrever como uma “organização económica e financeira, de tipo capitalista, estruturada segundo os mesmos parâmetros de maximalização do lucro, de controlo vertical e de produtividade, como qualquer empresa multinacional (…).
Simultaneamente, o cartel é uma organização militar.
A violência está na base de toda a organização criminosa. Uma violência por vezes extrema, inteiramente submetida à vontade de acumulação monetária, de dominação territorial e de conquista de mercados.[20][21]

Outro factor importante foi o vazio deixado pelo controlo de fronteiras e a inadaptação, face aos actuais fluxos migratórios, dos países de leste, nomeadamente a Rússia e a Ucrânia, situação que veio permitir que entre o território da Federação Russa, das repúblicas tornadas independentes (Kazaquistão, Uzbequistão, Arménia, Turquemenistão) que medeiam espaços com a China, Paquistão, Índia, Afeganistão e Irão se tornassem espaços difíceis de controlar numa primeira etapa do acesso à União Europeia, tornando-se tal característica, nas suas dificuldades de controlo, idêntica às condições em que se encontram os países que estão entre a Rússia e a União Europeia, a que juntamos naturalmente dada a sua natural gravitação ao redor de Moscovo, a Ucrânia, a Moldávia e a Bielo-Rússia.
Na prática tudo isto permitiu uma zona de circulação informal, à margem da lei, mesmo para nacionalidades estranhas ao espaço a que nos referimos, nomeadamente os cidadãos chineses, que não necessitam de visto para entrar na Rússia, a que se juntam indostânicos e cidadãos que abraçaram os islamismo radical.
Uma das grandes dificuldades foi precisamente a inexistência de fronteiras entre muitos países que integravam a ex-URSS, para citar só um exemplo entre a Rússia e a Ucrânia não está feita a demarcação fronteiriça na região de Kharkov e a sua fiscalização é escassa[22].
Perante esta situação, facilmente perceberemos a capacidade de estruturas de cartéis, como a atrás descrita, para rentabilizar um negócio que se baseia na vontade de mobilidade das pessoas, impulsionada pelas tecnologias de informação, que desta forma vêem a hipótese de diminuir o fosso norte-sul. Em muitos casos é uma questão de sobrevivência.


X


A imigração do leste da Europa em Portugal

A imigração oriunda destes espaços iniciou-se numa vaga de imigrantes romenos, ainda nos anos oitenta, que visava, acima de tudo, a utilização do espaço português como placa de trânsito – que se veio a revelar infrutífera – cujo destino final seriam os EUA e o Canadá. Todos nos recordamos das notícias trazidas a público sobre a detecção de cidadãos romenos, no porto de Lisboa ou do Porto, no interior de contentores com destino àqueles países.
Esta vaga de cidadãos romenos era de alguma forma empurrada para Portugal por decisões de países como a Alemanha, Bélgica, Holanda ou a França, que impediam a sua legalização através da utilização abusiva de solicitações de asilo político.
Como o regresso às origens era impensável, a solução era seguir até onde fosse territorialmente possível e, neste caso, a geografia trouxe-os até Portugal, vagueando em autênticas bolsas migratórias.
Como evolução natural, dadas as relações históricas com a Roménia, apareceram os fluxos migratórios oriundos da Moldávia.
A partir deste momento dá-se uma autêntica revolução no panorama das comunidades migrantes em Portugal, os fluxos migratórios oriundos de países de leste como a Moldávia, Roménia (com imigrantes cujas características deixam de ser apenas de etnia cigana), Ucrânia e Rússia, no seu conjunto, passam a liderar as comunidades estrangeiras em Portugal.
Foi possível fazer, num curto espaço de tempo, o que fluxos migratórios tradicionais a partir de África não o fizeram, tornando-se a comunidade do leste europeu (à data) a primeira entre a população migrante, situação que provocou, nas circunstâncias que todos conhecemos, a abertura legislativa para a legalização extraordinária, com a emissão de autorizações de permanência (AP), através do artigo 55º do decreto-lei 4/2001.
As orientações destas estruturas criminosas no controlo dos imigrantes, que garantia desde a origem e o trânsito pelos diversos países da UE o controlo das pessoas através de meios de transporte por si dominados, visava, uma vez chegados a Portugal o seguinte: (i) o trabalho clandestino no sistema económico legal que vai da restauração à construção civil, passando por empresas de serviços de regulares agentes económicos, sendo o imigrante permanentemente confrontado com a incerteza da sua situação, o medo do despedimento, a precariedade do alojamento e a impossibilidade de mobilidade social; (ii) num segundo momento a colocação em empresas, estando a maior parte destas ligadas a subempreitadas da construção civil, conseguindo desta forma, através do crime de extorsão, em períodos próximos do final do mês, os necessários financiamentos regulares para as organizações.
Perante este cenário, na prática, o que temos é o financiamento de estruturas criminosas sedeadas no leste europeu através do nosso sistema económico legal.
No ano de 1997, a Organização Internacional para as Migrações (OIM) calcula em mais de sete biliões de dólares a receita líquida obtida pelos senhores do crime organizado com o tráfico de seres humanos[23].
É aqui, tendo em conta as estruturas do crime organizado já mencionadas, que o equivalente à componente militar entra em acção, deixando por diversas vezes a sua marca. Esta componente não é obviamente uma componente militar tradicional mas uma adaptação de muitos elementos que serviram em forças militares e serviços de segurança, que recorrendo à sua enorme experiência não enjeitam, sempre que se afigure necessário, a eliminação física do imigrante caso não seja possível, por meios pacíficos, obter o pagamento a que entendem ter direito[24].


Neste contexto destacam-se organizações a partir de Kichinev na Moldávia, principalmente a vertente eslava com grande influência na Transnistria e fortes ligações à Rússia; Bucareste, Satu Mare e Suceava na Roménia; Kiev e Ternopil na Ucrânia e, obviamente, Moscovo, que forçam para seu controlo parcelas do território português onde instalam os imigrantes, assistindo-se a uma pretensão de não violação de espaços previamente demarcados de forma a evitar-se a confrontação inter grupos.
Não se fique contudo com a ideia de que os métodos utilizados são extremamente avançados, em parte, como também o disse Ziegler, essa ideia é errada. Em muitas das situações do quotidiano, os operadores são intermediários arcaicos, caóticos e violentos. Há redes de passadores a operar em subempreitada. Embora consigam obter regularmente quantias consideráveis, não deixam de fracassar frequentemente na sua tarefa de encaminhar os trabalhadores clandestinos para mercados lucrativos.
No caso específico do auxílio à imigração ilegal, a organização é potencializada em grande parte a partir de uma estrutura orgânica bem delimitada e com o seguinte encadeamento:

No seu topo, o núcleo de liderança com a responsabilidade de definir os programas e as orientações estratégicas, a coordenação das restantes células operacionais (as chefias estão normalmente sedeadas em Kiev e Moscovo). Têm sob a sua responsabilidade a criação de agências de captação dos candidatos a imigrantes;
No nível imediatamente a seguir, os núcleos administrativo e de informações, integrando elementos que anotam e contabilizam as remessas monetárias provenientes de zonas sob a sua dominação, elementos que têm a seu cargo a recolha de dados de natureza pessoal, de laços familiares, e mesmo de património, dos imigrantes;
Na base estarão os núcleos operacionais, que integram células de 5 a 10 elementos, incumbidos de missões específicas. Destacam-se aqui os executantes e os seguranças, armados e treinados para a intimidação e a execução de actos especialmente violentos sobre os imigrantes, a segurança das chefias locais e acções de contra vigilância.

XI

A prestação de serviços na falsificação de documentos

A produção de documentos de viagem, essencialmente passaportes e bilhetes de identidade, com características de produção industrial assente na instalação de uma tipografia e na ideia clássica de dois ou três falsificadores de prestígio, faz parte da arqueologia da falsificação de documentos.
Esta ideia leva a uma alteração qualitativa quanto à forma de falsificação: deixa de existir uma base estática quanto à sua produção e a falsificação passa a ser feita por componentes que, ainda que espalhadas por diferentes países da UE, concorrem para a elaboração de um produto final, recorrendo às novas tecnologias.
Circulam deste modo partes dos documentos a falsificar, sendo já uma constatação que o papel para suporte de falsificação de bilhetes de identidade começa a ser importado, deixando de ser exclusivamente produzido em Portugal, fazendo emergir um número interminável de actores, nas mais diversas localizações geográficas, que torna extremamente difícil a eliminação de redes com interesses estruturais ou meramente conjunturais nesta matéria.
O reflexo desta dificuldade é a convergência de interesses de diferentes comunidades migrantes na falsificação de documentos, e se podemos dizer que cidadãos angolanos e guineenses dominavam este mercado, não deixa de ser relevante a posição de cidadãos indostânicos pela qualidade de prestação de serviços em matéria de falsificação.

XII

O modus operandi de fluxos migratórios


A imigração para Portugal regista nuances dignas de registo.
À tentativa frustrada de entrada em território nacional pelo Aeroporto de Lisboa ou do Porto, verificou-se a procura de alternativas no espaço europeu, incidindo estas em aeroportos como Madrid, Paris e Roma, só para citar três exemplos.
É por estas novas opções de rotas que determinados fluxos migratórios ilegais procuram chegar a Portugal. Em face desta intensidade migratória a comunidade brasileira passa a ser actualmente a maior comunidade estrangeira em Portugal, juntando-se a este pormenor um expectável abrandamento na evolução migratória do leste europeu como consequência do recente alargamento da UE, que a partir de 2007 se estendeu à Roménia e Bulgária, e da recessão económica que vivemos actualmente em Portugal (baixos salários e desemprego).
Verificamos, em certas origens e nacionalidades, uma mudança nas qualificações profissionais, que passam a integrar a restauração, indústria hoteleira e construção civil, a que se associa com particular incidência o tráfico de mulheres, que tem uma característica própria no que se pretende definir, num crime mais abrangente, como o tráfico de seres humanos[25].
O facto de não se verificar um abrandamento neste fluxo migratório deve-se essencialmente a dois pormenores, a saber: a inflação elevada associada ao desemprego, a insegurança dos grandes centros urbanos no Brasil e elevados índices de pobreza, que afectam com especial incidências as mulheres, nomeadamente as oriundas do nordeste e interior do país.
Mas outro factor deve ser tido em conta: dentro do espaço da CPLP, que registou um retrocesso quanto à dimensão dos seus cidadãos em Portugal, essencialmente pela capacidade de introdução de cidadãos do leste europeu, o único país com força política que pode exercer pressão para a legalização dos seus cidadãos é o Brasil e este ponto, de capital importância nas relações luso-brasileiras, funcionará como elemento propulsor para alargar as perspectivas de legalização e, no mínimo, garantir a intensidade deste fluxo migratório.
Quanto aos mecanismos que procuram rentabilizar a partir do Brasil o auxilio à imigração ilegal, os mesmos são extremamente difusos e tanto se pode estar a lidar apenas com um angariador no Brasil e um receptor em território nacional, sendo quase um negócio familiar, como se pode estar a lidar com um grupo de angariadores e de receptores mais numeroso e elaborado, incorrendo este último, como consequência do auxilio à imigração ilegal, na prática de crimes instrumentais tais como a falsificação e subtracção de documentos, utilização de documentos alheios, burla relativa a trabalho e emprego, angariação de mão-de-obra ilegal, tráfico de pessoas e lenocínio, movimentando as práticas atrás mencionadas elevadas quantias em dinheiro.
Este ponto será, em minha opinião, aquele que mais deverá merecer a atenção dos responsáveis nesta matéria, face ao desenvolvimento da selecção e angariação de mulheres em países terceiros[26], com particular incidência no nordeste do país, com vista à sua colocação em bares de alterne e prostituição em Portugal.


XIII


A resposta legislativa para o combate a este tipo de crime

Se é verdade que a reorganização da legislação para combater este flagelo se constatou numa melhor articulação entre os serviços de informações, SIS e SIED, face às suas áreas comuns de actuação de que a imigração ilegal e o tráfico de pessoas é um exemplo paradigmático, dos ponto de vista da actuação interna, tendo por base o espaço geográfico em que as polícias podem trabalhar, não é menos verdade que com a Lei de política criminal e a nova Lei Orgânica de Investigação Criminal (LOIC), entidades polícias como o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), de competência específica e a Polícia Judiciária, viram os seus campo de acção concertados, ainda que haja uma componente concorrencial na investigação destes tipos de crime e que se espelha da seguinte forma, consolidando a necessidade de penalização jurídica destas formas perniciosas de desequilíbrio social:

Lei nº. 51/2007, de 31 de Agosto – lei de política criminal

Objectivos específicos da política criminal: prevenir, reprimir e reduzir a criminalidade violenta, grave ou organizada, incluindo a associação criminosa dedicada ao tráfico de pessoas – alínea a) do artº 2;
Crimes de prevenção prioritária: tráfico de pessoas, falsificação de documentos e auxílio à imigração ilegal – alínea a), d) e f) do artº 3;
Crimes de investigação prioritária: tráfico de pessoas, auxílio à imigração ilegal e falsificação de documentos punível com pena de prisão superior a 3 anos e associada ao tráfico de pessoas e ao auxílio à imigração ilegal, a saber – as alínea a), f) e d) do artº 4 e do artº 5, definindo-se os imigrantes como vítimas especialmente indefesas;


Lei nº. 49/2008, de 27 de Agosto – lei de organização da investigação criminal:

· Órgão de polícia criminal de competência específica: SEF – nº 2, artº 3
· Competência específica em matéria de investigação criminal: princípios da especialização e racionalização na afectação dos recursos disponíveis para a investigação criminal – artº 4
· Crimes da competência de investigação do SEF definidos na LOIC (também competência da PJ): auxílio à imigração ilegal e associação de auxílio à imigração ilegal, tráfico de pessoas e falsificação ou contrafacção de documento de identificação ou de viagem, conexo com os anteriores – respectivamente, as alíneas. a), b) e c) do nº 4, artº 7

A este quadro deverá ter-se sempre presente a necessidade de conjugação com a legislação do nosso Código Penal, com as alterações efectuadas em 2007, da lei de estrangeiros e demais legislação internacional, instrumentos preciosos para um combate consequente a este tipo de criminalidade e que a seguir enumeramos, destacando desde logo formas de protecção às vítimas deste tipo de crime, sublinhando a intenção de penalizar os prevaricadores deste tipo de crime e proteger o imigrante, em situação de fragilidade, das redes que o aliciam como forma de defesa dos direitos humanos.

Código Penal (alterações de 2007):

artº 160: tráfico de pessoas – crime contra a liberdade pessoal;
artº 169: lenocínio;
artº 256: falsificação ou contrafacção de documento (com incidência particular para a alínea c) do artº 255);
artº 261: uso de documento de identificação ou de viagem alheio;
artº 222: burla relativa a trabalho ou emprego;
· artº 299: associação criminosa;

Lei nº. 23/2007, de 4 de Julho – lei de estrangeiros:

· artº 181 e seguintes – disposições penais:
· artº 183 - auxílio à imigração ilegal
· artº 184 - associação de auxílio à imigração ilegal –
· artº 185 - angariação de mão-de-obra ilegal –
· artº 186 - casamento de conveniência

Resposta legislativa para a protecção a vítimas de tráfico de pessoas na lei de estrangeiros.

Possibilidade de emissão de uma autorização de residência válida por 1 ano e renovável por iguais períodos – artº 109;

Período de reflexão de 30 a 60 dias, anterior à emissão de autorização de residência – artº 111;

Acesso a informação relativa aos direitos relacionados com a protecção e apoio das vítimas – artº 110;

· Acesso a meios de subsistência e a tratamento médico urgente e adequado, assistência psicológica, garantia de segurança e protecção, assistência de tradução e interpretação, bem como jurídica e acesso a programas de integração e qualificação profissional – artigos 112 e 113;


Ao nível dos instrumentos legislativos internacionais e transpostos para o nosso ordenamento jurídico interno, destacam-se os seguintes:

Convenção da ONU contra a Criminalidade Organizada Transnacional, em particular o protocolo adicional relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas em especial Mulheres e Crianças – 2000;
Decisão Quadro do Conselho da União Europeia – 2002;
Plano de Acção da OSCE contra o Trafico de Seres Humanos – 2003;
Directiva 2004/81/EC do Conselho da União Europeia – 2004;
Convenção contra o Tráfico de Seres Humanos do Conselho da Europa – 2005;
· Plano de Acção da União Europeia sobre boas práticas, normas e procedimentos para combate e prevenção do Tráfico de Seres Humanos – 2005;

É com este cenário legislativo se trabalha, perseguindo objectivos, já numa percepção dos efeitos da globalização em território nacional atrás aludidos, cujos alvos podem perfeitamente ser atingidos, atentos os efeitos perniciosos da sua acção no nosso ordenamento jurídico, em espaços que vão para além do território nacional e se localizem num qualquer Estado-Membro da UE e que uma vez executados permitem estender as actuações policiais, naturalmente subordinadas à fiscalização judiciária, com vista à sua responsabilização penal, através da utilização de mecanismos disponibilizados pelo Eurojust, sedeado em Haia, com base na Lei de Cooperação Judiciária Internacional (Lei 144/99 de 31/8) e da aplicação da Lei 65/2003, de 23 de Agosto, com a aprovação do regime jurídico do mandado de detenção europeu nos Estados-Membros, tendo da utilização destes mecanismos já resultado acções bastante positivas no combate a este tipo de criminalidade.


XIV

Conclusão

“Em muitos aspectos, os mundos histórico e pós-histórico manterão existências paralelas, mas diferenciadas, com relativamente pouca interligação entre si. Haverá, todavia, diversos eixos ao longo dos quais estes dois mundos poderão colidir. O primeiro relaciona-se com o petróleo (…).
O segundo eixo de interacção é actualmente menos perceptível do que o petróleo, mas, a longo prazo, poderá ser mais perturbador: tem a ver com a imigração. Verifica-se presentemente um afluxo constante de pessoas dos países pobres e instáveis para aqueles que são ricos e seguros, o que está a afectar virtualmente todos os estados do mundo desenvolvido. Este afluxo, que tem vindo a aumentar nos últimos anos, pode acelerar-se repentinamente devido a tumultos no mundo histórico. Acontecimentos como a desintegração da União Soviética, a irrupção da violência étnica na Europa de Leste ou ainda a absorção de Hong-Kong por uma China comunista sem reformas poderão dar azo a maciças transferências de populações do mundo histórico para o pós-histórico.”


Francis Fukuyama

Essencialmente esta nova dinâmica criminal, associada às redes de imigração, deixa de ser um problema de mera transposição das nossas fronteiras externas para passar a desenvolver-se, em rede, pelo interior de países alvo da UE.
A este propósito transcrevo o expresso pelo Relatório de Segurança Interna relativo a 2001, ainda assim bastante actual, e que diz o seguinte:
A cada vez maior mobilidade de imigrantes ilegais no interior da UE e no interior do país, traduzida na opção, em 2000, pelo circuito paralelo da legalização – o do regime excepcional de autorização de residência, previsto no artigo 88º do Decreto-Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto, e, em 2001, pelo «circuito paralelo» das autorizações de permanência. (…) O aumento da criminalidade da criminalidade organizada associada à imigração, que se traduz, para o SEF, no alargamento da sua intervenção no âmbito da investigação criminal, tendo em conta os crimes conexos ao da imigração ilegal: falsificação de documentos, subtracção de documentos, burla relativa a trabalho e ao emprego, lenocínio, tráfico de pessoas, extorsão e roubo, sequestro, rapto, coacção, ofensas à integridade física graves e mesmo o próprio homicídio. Este alargamento estendeu-se a um novo crime – o da angariação de mão-de-obra ilegal, tipificado pelo Decreto-Lei 4/2001, de 10 de Janeiro, que alterou o Decreto-Lei n.º 244/98 de 8 de Agosto, passam a integrar as preocupações constantes do relatório de segurança interna referente aos anos de 2001[27] e que não sofrem alterações significativas actualmente.
Como consequência, o desenvolvimento desta nova forma de actuação, poderá atingir a segurança interna dos países alvo. Desenvolve-se um novo tipo de criminalidade, de carácter essencialmente transnacional, que introduz sem grandes obstáculos novos tipos de criminalidade, no caso em apreço ligados à exploração da condição humana de imigrantes que poderão atingir proporções preocupantes. Tais organizações dedicam-se a uma actividade de grupo, disciplinada e estruturada, que tem como primeiro fim obter proveito económico através de comportamentos criminosos a longo termo e contínua, conduzida independentemente das fronteiras nacionais, gerando proveitos que são disponibilizados para fins ilícitos.[28]
A título meramente exemplificativo, segundo um “Draft paper” preparado pelo Secretariado do Grupo de Budapeste para o encontro do Grupo de Trabalho na Moldávia, Chisinau, 7-8 Novembro 2002”, estima-se que entre 600.000 a 1.000.000 de cidadãos moldavos, num total de 4.500.000, estão no exterior (dados das Nações Unidas)[29]. Ainda segundo Organizações Não Governamentais (ONG’S), 70% do total de imigrantes no exterior são mulheres.
Quanto a Portugal, ainda hoje, tendo em conta as rotas utilizadas, poderemos adiantar que faz parte do roteiro e dos canais migratórios, a saber: Itália – França – Alemanha – Portugal.

No cenário internacional inicialmente a angariação incidiu sobre mulheres albanesas, à quais se seguiram as moldavas, havendo indícios de que países como a Bielo-Rússia e o Tajiquistão vejam as suas nacionais a suplantar as moldavas.
Depois das armas e da droga, o tráfico de mulheres é o mercado em ascensão a partir da América Latina e África (Nigéria, Gana, Congo, R. D. Congo), direccionando-o para as repúblicas da ex-união soviética e da UE.
Facturam-se milhões de euros por ano que terão como destinos os negócios do crime organizado. O que dissemos anteriormente quanto à estrutura das organizações criminosas, que visam à semelhança de organizações capitalistas o lucro, associado a uma componente que Ziegler caracterizou de militar e que elimina obstáculos à sua implantação, introduziu-se em Portugal ao nível do tráfico de imigrantes.
O nosso país passa a ser visto como espaço estratégico para a passagem e trânsito de imigrantes. A partir deste princípio teremos que projectar, ao nível pro-activo, estudos e preparação para lutar contra este tipo de criminalidade que, estando desde já implantada, carecerá ainda de alguma solidez, situação que permitirá algum espaço de manobra aos organismos oficiais.
Nesta perspectiva a utilização dos migrantes, sob coacção de organizações criminosas, terá quatro componentes a ter em conta e que se não estiverem estruturadas no âmbito de uma política adequada para a investigação criminal serão perniciosas para a segurança interna, a saber:

A utilização do imigrante com vista à sua exploração contínua e cujo objectivo será o de garantir de forma regular fluxos financeiros para a organização;
Directamente relacionada com a componente anterior está a introdução de elementos operacionais cujo objectivo será o de evitar a interferência no bom funcionamento da organização. A sua acção é a de garantir que a cobranças mensais se processem com normalidade. Associados a estes elementos está uma bem implementada rede de informações que indica com precisão os imigrantes a extorquir;
A exploração sexual de mulheres, componente que garante à priori a obtenção de elevados dividendos financeiros. Os fluxos migratórios que se destacam são oriundos do leste da Europa e Brasil, mas começa a fazer-se sentir, a interferência de mulheres oriundas de África, nomeadamente nigerianas;
O aproveitamento de canais migratórios para a introdução de elementos que façam parte de células terroristas e necessitem de espaços para recuo, enquanto aguardam directrizes para futuras acções.

Numa perspectiva genérica, podendo determinados crimes estarem mais associados a certos fluxos migratórios, podemos dizer que houve um desenvolvimento de crimes como a extorsão, associação criminosa, auxílio e associação de auxílio à imigração ilegal, roubo, sequestro, homicídio e falsificação de documentos e que levaram a um acentuar de condenações neste tipo de.
Emerge a partir das intervenções dos Órgãos de Polícia Criminal e das decisões judiciais outro problema que deve merecer a atenção para o combate aos fluxos migratórios desregulados. Num total de 14164 reclusos 951 são de África, 204 da América Latina e 359 originários de países do leste da Europa, com especial destaque para 122 ucranianos, 81 moldavos, 45 romenos e 42 russos[30]. Em dois anos, o número de reclusos de Leste cresceu mais de 350% constituindo um grupo “perigoso” e um “risco para outros reclusos”[31].
Segundo o investigador Rui Abrunhosa da Universidade do Minho, especialista em Psicologia da Justiça, “ …os reclusos – acusados normalmente de associação criminosa, angariação de imigração ilegal, extorsão e homicídios ligados a esta actividade criminal – apresentam um “perfil muito complicado”: têm geralmente um maior percurso académico do que os restantes detidos e foram sujeitos a treino militar, o que faz deles pessoas fisicamente muito fortes. (…) Para este imigrantes, “não há saídas precárias ou liberdade condicional”. Só podem cumprir integralmente a pena e, no final, resta a extradição para o país de origem. (…) A necessidade de um acompanhamento de perto destes indivíduos (…) é sobretudo explicada pelo facto de “a cadeia não modificar os padrões de comportamento e de existir criminalidade dentro das prisões” (…) muitos destes elementos (…) seriam candidatos a uma eventual cadeia de segurança máxima, cuja construção em Portugal o investigador defende”.[32]
Por último, mas não menos importante, uma lacuna que obrigatoriamente teremos que ultrapassar. Não há, até à data em Portugal, resultados significativos de investigações realizadas sobre fluxos migratórios chineses. Como obstáculo de difícil transposição temos a questão cultural, que obrigará a uma maior aprendizagem sobre a cultura de pessoas oriundas daquelas paragens.
A forma como jogam com o muro de silêncio imposto pelos “cabeça de cobra” impossibilita a obtenção de resultados; na maioria dos casos estes ficam-se por recusas de entrada no país ou readmissões a Espanha, o que quer dizer que a penalização recai sobre o imigrante traficado.
Como já foi dito o dinheiro envolvido ultrapassa os preços praticados pelas organizações do Leste da Europa, as pessoas traficadas não trabalham fora da comunidade, as empresas – em muitos casos sem volume de negócios que justifiquem a sua criação – funcionam como rede de recepção e de encobrimento. Esta é, em síntese, a matriz que caracteriza (para além da discrição quase absoluta) a comunidade chinesa informal perante a qual não houve, até à data, qualquer actuação significativa apesar de um enormíssimo rol de suspeitas.
Será importante, para as polícias europeias, um trabalho em rede, com uma troca de informação que aproveite os desenvolvimentos das tecnologias de informação, se constituam – desde que ultrapassados obstáculos legais – em equipas mistas de investigação, ponto que a Europol tem vinda a trabalhar e pela qual deverá passar grande parte da actuação das polícias europeias num futuro próximo.
Esta uniformidade de métodos de trabalho e investigação obrigará a uma reestruturação da formação policial e respectivas competências no nosso país, cujo objectivo deverá primar pela agilidade da sua actuação na resposta aos problemas colocados.
A necessidade de reestruturação, tanto policial quanto judicial, será tanto mais necessária face à realidade descrita por Fukuyama no seu livro “O Fim da História e o Último Homem” em que a procura da felicidade humana é feita no sentido das sociedades demo-liberais em contraposição às sociedades ditatoriais, partindo da perspectiva de Hegel em que o eclodir da Revolução Francesa, e também a Americana, segundo o autor, nos levariam tendencialmente para as sociedades perfeitas onde o homem teria o direito ao thymos[33], ou seja ao reconhecimento.
Com a imigração, o grande desafio o século XXI, assistimos a essa procura; o grande problema para os países de destino é que tal procura enferma de uma grave desregulação e o movimento a que assistimos, envolvendo cifras enormes, foi com naturalidade, face à forma como se desenvolve a criminalidade em rede, e dadas as características da globalização, aproveitado por formas organizadas de crime que, a desenvolverem-se descontroladamente, poderão pôr em causa o natural equilíbrio social pretendido pelos países mais desenvolvidos.

José van der Kellen
Inspector Superior do SEF
Bibliografia e notas do autor



[1] Ver discurso do Presidente Obama na última reunião da Organização de Estados Americanos (OEA): “A América é uma grande nação, mas é apenas uma nação”.

[2] Destacam-se aqui crimes instrumentais como a falsificação de documentos, tráfico de pessoas (tipificado nas alterações de 2007 ao Código de Penal), casamentos brancos, extorsão, rapto, sequestro, branqueamento de capitais, etc.

[3] Apontamentos de uma aula do Prof. Adriano Moreira no Instituto da defesa Nacional em Coimbra, a 12.10.2002 – CDN 2003.

[4] http://www.sis.pt/ – A lei comete ao SIS a exclusividade da produção de informações de segurança para apoio à tomada de decisão do Executivo.
O SIS é, no âmbito do SIRP, o único Serviço que integra as Forças e Serviços de Segurança, com as quais tem o especial dever de colaboração.
Deste modo, compete-lhe recolher, processar e difundir informações no quadro da Segurança Interna, nos domínios da sabotagem, do

terrorismo, da espionagem, incluindo a espionagem económica, tecnológica e científica, e de todos os demais actos que, pela sua natureza, possam alterar ou destruir o Estado de direito democrático, incluindo os movimentos que promovem a violência (designadamente de inspiração xenófoba ou alegadamente religiosa, política ou desportiva) e fenómenos graves de criminalidade organizada, mormente de carácter transnacional, tais como a proliferação de armas de destruição maciça, o branqueamento de capitais, o tráfico de droga, o tráfico de pessoas e o estabelecimento de redes de imigração ilegal.

[5] http://www.sied.pt/ – De acordo com o quadro legal vigente, actualizado pela Lei n.º 4/2004, de 6 de Novembro, o SIED tem por missão produzir informações visando a salvaguarda da independência nacional, dos interesses nacionais e da segurança externa do Estado Português. Complementarmente, a nova Lei de Segurança Interna (Lei n.º 53/2008, de 29 de Agosto) veio prever a participação do SIED no Conselho Superior de Segurança Interna (CSSI), no Gabinete Coordenador de Segurança (GCS) e na Unidade de Coordenação Anti-Terrorista (UCAT). A ratio legis desta alteração legislativa radica na responsabilidade do SIED, enquanto serviço de segurança externa, e nessa condição instrumento complementar da actividade de segurança interna, em assegurar as informações necessárias sobre as ameaças, de origem externa, à segurança interna.
Neste quadro, o SIED contribui para o processo de decisão política através da produção de informação privilegiada, sobretudo nos domínios relacionados com: a avaliação da ameaça terrorista, a identificação de redes internacionais de crime organizado, nomeadamente as envolvidas em narcotráfico, facilitação da imigração ilegal e proliferação nuclear, biológica e química (NBQ); o acompanhamento permanente da situação de segurança das comunidades portuguesas residentes no estrangeiro; o alerta precoce para situações onde haja um potencial comprometimento dos interesses nacionais; as matérias políticas, energéticas, económicas e de Defesa que constituam prioridade da política externa portuguesa.

[6] Caracterização de Jacques Delors face à queda do muro de Berlim e as suas consequências.

[7] Fronteiras: Do Império à União Europeia, Adriano Moreira in Revolução e Democracia – 1, do Marcelismo ao fim do Império, direcção de J.M.Brandão Brito para o Círculo de Leitores, pág.278.

[8] Dicionário de História do Estado Novo, direcção de Fernando Rosas e Brandão de Brito, Emigração, pág. 294 a 297.

[9] Do Marcelismo ao fim do Império, Revolução e Democracia, direcção de Brandão de Brito, trabalho do Prof. José Telo, Capítulo IV – As relações internacionais da transição, pág. 226 a 233.

[10] Dicionário de História do Estado Novo, direcção de Fernando Rosas e Brandão de Brito, Emigração, gráfico, pág. 296.

[11] Altos e baixos de um casamento feliz, artigo de Teresa de Sousa, jornalista, in Revista Egoísta – "Portugal pensar o futuro", Fevereiro de 2003.

[12] Fonte SEF.

[13] Portugal e a sua circunstância, texto do Prof. Adriano Moreira, in revista Egoísta – "Portugal pensar o futuro", Fevereiro de 2003.

[14] O Conceito de fronteira na Época da Mundialização, de Maria Regina Marchueta, Edições Cosmos, Instituto de Defesa Nacional, pág. 39.

[15] Quanto a este assunto o posicionamento geográfico de países com a Ucrânia torna-se vital para a UE. Esta ideia ficou aliás expressa em conferência a que se chamou “Kiev Initiative”, realizada a 21 de Dezembro de 1999, onde se reafirma a situação geográfica da Ucrânia como zona tampão (“buffer zone”) dado o seu papel de país de trânsito a ser utilizado como rota por organizações ligadas à imigração ilegal cujo destino é essencialmente a UE. Em Janeiro de 2000, por ocasião de uma peritagem da UE e que o autor integrou, segundo informações recolhidas junto de ONG’s haveria cerca de 500 000 imigrantes ilegais na Ucrânia (originários essencialmente de países do Médio-Oriente, China, Vietname, Nigéria, Paquistão, Índia, Afeganistão) cujo objectivo era chegar a países da UE, razão pela qual as autoridades daquele país exigiam apoio para a reestruturação dos seus serviços.

[16] O Conceito de fronteira na Época da Mundialização, Cap. V, A evolução das fronteiras em Portugal, de Maria Regina Marchueta, Edições Cosmos, Instituto de Defesa Nacional, pág. 191, citando Adriano Moreira.

[17] Sublinhado nosso. Estas formas de exclusão que acontecem em parte pela inabilidade dos Estados alvo dos fluxos migratórios, são claramente exploradas pelas organizações criminosas para a prossecução de uma estratégia de exploração do imigrante nos mais variados níveis e que se afigura de tal modo rentável que faz perfilar esta actividade como uma das que mais lucros permitem ao crime organizado neste início de século.

[18] O Conceito de fronteira na Época da Mundialização, Cap. V A evolução das fronteiras em Portugal, de Maria Regina Marchueta, Edições Cosmos, Instituto de Defesa Nacional, pág. 192 e 193.

[19] A Europa de Leste, Do início da queda à actualidade, de Bulent Gokay, pág. 11.

[20] Os senhores do crime, As novas máfias contra a democracia, de Jean Ziegler, pág. 19, Editora Terramar.

[21] Em Portugal foram julgados casos de organizações criminosas cuja caracterização se assemelha à definição de Jean Ziegler, nomeadamente no Algarve, para citar os casos mais recentes e que se traduziram em pesadas condenações aos arguidos envolvidos cita-se aqui o processo com o NUIPC 22/05.5ZRFAR do qual resultou a leitura do Acórdão de sentença aos 11DEZ2007, no 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Loulé, que envolveu a “Ala Ucraniana”.
Da extensa leitura, mais de cento e quarenta folhas, que se prolongou por cerca de quatro horas, salienta-se o facto de se ter considerado provado o cometimento por parte dos arguidos de vários crimes, nomeadamente os crimes de AssociaçãoCriminosa, Auxilio à Imigração Ilegal, Lenocínio, Extorsão Agravada, Rapto, Roubo, Falsificação de Documentos e Violação de Domicílio.
Ficou ainda provado que os arguidos actuavam em grupo, de forma perfeitamente organizada e reiterada, funcionando como um grupo possuidor de uma forte estrutura hierarquizada, tendo cada um dos seus elementos tarefas bem definidas no interior do mesmo. Ao arguidos foram condenados a penas de 25, 22, 20, 17, 15, 11 e 5 anos respectivamente . Outro caso com condenações idênticas e numa investigação de crimes praticados por uma estrutura criminosa e que ficou conhecida como a “Ala Moldava”, foi a do processo com o NUIPC 1099/06.0TAPTM , tendo os arguidos sido condenados por associação criminosa, vários crimes de extorsão e extorsão agravada, coacção, furto, corrupção, falsificação de notações técnicas e detenção de arma proibida, variando as penas aplicadas entre os 23, 17, 10 e os 5 anos para aos arguidos mais importantes.


[22] Constatação da Missão de Peritos da UE à Ucrânia que o autor integrou, de 17 a 21 de Janeiro de 2000.


[23] Os Senhores do Crime, As novas máfias contra a democracia, de Jean Ziegler, pág. 116.

[24] Passou a ser vulgar no léxico de processos-crime em curso em Portugal, com matéria ligada à imigração ilegal oriunda do leste europeu, a terminologia reketiri, corruptela russa do termo inglês racketeer, aquele que exerce uma chantagem, uma extorsão, que cobra determinadas quantias para exercer protecção, situação também descrita a propósito da acção destes grupos nos EUA no livro de Jean Ziegler,” Os Senhores do Crime, As novas máfias contra a democracia, pág.81.

[25] De acordo com a Convenção Europol o Tráfico de seres humanos é definido como a forma de submeter uma pessoa ao poder real e ilegal de outrem, mediante recurso à violência ou a ameaças, abuso de autoridade ou a utilização de subterfúgios. Não restringe o crime de Tráfico de pessoas apenas para fins de exploração sexual.

[26] Designações para Estados que não integram a UE.

[27] Relatório de segurança interna relativo a 2001, Diário da República de 13 de Julho de 2002, II Série-C Número 13, pág. 23.

[28] Definição do National Criminal Intelligence Service citada em documento do Departamento Central de Investigação e Acção Penal da Procuradoria-Geral da República de Setembro de 2002.

[29] Draft paper prepared by the Secretariat of the Budapest Process for the meeting of the Working Group on Moldova, Chisinau, 7-8 November 2002. The Republic of Moldova makes an unofficial estimation of over 500 000 of its citizens illegally staying abroad, however the UN data varies between 600 000 and 1 million. Taking into consideration that the population of Moldova is about 4, 5 million.

[30] Fonte Direcção Geral dos Serviços Prisionais, in DN de 16 de Março 2003.

[31] in DN de 16 de Março de 2003.

[32] Idem, ibidem.

[33] “O Fim da História e o Último Homem”, Ascensão e queda do thymos – Capítulo 17, de Francis Fukuyama, págs. 185 a 193, Gradiva – Publicações Lda.

2 comentários:

Anónimo disse...

está muito rico este trabalho...desde já devo dizer q vou precisar de alguma ajuda sua se for possível...chamo-me joao nazare, vivo em madrid, de momento, a frequentar um curso de oficial da escala superior, sou angolano, polícia, formado pelo Instituto superior de ciencias policiais e segurança interna e tb finalista do curso /Gestao de Recursos Humanos.will_smith44@hotmail.com pode escrever p mim se concorda em me ajudar a escrever sobre algo q tenho em vista e necessito de orientaçao.abraços

Rasec disse...

Caro Kellen,
Ao fazer pesquisas neste mundo virtual, venho encontrar as tuas palavras e a tua análise acertada. Parabéns! Abraço